Não existe ninguém no mundo melhor que os selvagens, os camponeses e os provincianos para estudar profundamente e em todos os sentidos os seus próprios afazeres; assim, quando passam do Pensamento ao Fato, podeis encontrar as coisas mais completas. (BALZAC, apud LÉVI-STRAUSS) O que se pretende realçar aqui é que, afora o valor em si dos saberes patrimoniais, eles não podem ser vistos como expressões congeladas – meras representações do passado. Tal maneira de pensar se insere na lógica ocidental, que elege a si própria, de modo absoluto, como a única expressão da razão – a medida de todas as coisas –, atribuindo às outras formas societárias um pensamento pré-lógico, inferior e irracional. Quando as formas tradicionais do saber são reconhecidas, elas o são apenas como espelho de um tempo que já passou – um tempo fossilizado –, como se fossem racionalidades mortas. Ou, no máximo, quando se admite a legitimidade desse saber, é conferido a ele um status secundário – saber empírico que decorre meramente da experiência. Sabe-se que essas expressões do raciocínio integram o pensamento ocidental, fundado na lógica cartesiana que se configura polar, dicotômica e excludente.
Superar os limites dessa razão implica considerar que o pensamento do outro em sua originalidade seja portador do que Lévi-Strauss chama de “ciência do concreto”, como expressão do “pensamento selvagem”. Para ele, ...longe de serem , como muitas vezes se pretendeu, obra de uma “função fabuladora” que volta as costas à realidade, os mitos e os ritos oferecem como valor principal a ser preservado até hoje, de forma residual, modos de observação e de reflexão que foram (e sem dúvida permanecem) exatamente adaptados a descobertas de tipo determinado: as que a natureza autorizava, a partir da organização e da exploração especulativa do mundo sensível em termos de sensível. Essa ciência do concreto devia ser, por essência, limitada a outros resultados além dos prometidos às ciências exatas e naturais, mas ela não foi menos científica, e seus resultados não forma menos reais.
Assegurados dez mil anos antes dos outros, são sempre o substrato de nossa civilização. (LÉVI-STRAUSS, 1989, p. 31)
Esse pensamento, que não se confunde necessariamente com o pensamento do selvagem, é provido de abstração e se apresenta como uma dimensão do pensamento universal.
Tal como o pensamento científico, o pensamento mítico é analítico e sintético e, portanto, totaliza-dor (GODELIER, 1982).
Assim, nessa crise do pensamento contemporâneo, a construção de novos paradigmas requer o repensar tanto dos padrões dominantes que regem a relação homem-natureza na modernidade, quanto da cultura e da razão técnicocientífica em que se funda a lógica ocidental. Isso implica um novo projeto societário que venha a incorporar – num movimento contínuo de atualização e renovação – todo um saber secular ou Milena r dotado de conteúdo cósmico e histórico, produzido numa relação íntima e direta com a natureza.
Está se referindo a todo um saber mítico, simbólico e cultural – patrimonial – que índios, seringueiros, pescadores, coletores – povos do mar, da terra e da floresta – vêm produzindo em simbiose com os ciclos produtivos e naturais, em relação de profundo respeito ao meio em que
se inserem. O conhecimento que possuem sobre os ecossistemas dos quais fazem parte e sobre a diversidade de espécies que ali habitam constitui um verdadeiro patrimônio de que a modernidade não pode prescindir para a continuidade da vida no planeta.
Segundo Carvalho (1992), “uma nova cientificidade implica uma ampla reflexão sobre a ciência tradicional”. Para esse autor, o caráter dessa proposta, pensada já numa perspectiva “bioantropossocial” (uma vez que que dialoga com as ciências da vida e com as ciências do homem), não se ancora na justaposição de eficácias científicas, burocráticas e corporativas, mas no diálogo entre saberes de várias ordens, não apenas no âmbito disciplinar, mas com outras formas de conhecimento dotadas de lógicas culturais próprias. Desse modo, trata-se não apenas de reconhecer outras formas de saber geradas pela humanidade, em seu caráter histórico e patrimonial, mas de buscar um intercruzamento ou complementaridade de perspectivas para a construção de novas configurações paradigmáticas. Conforme Edgard de Carvalho, “essas configurações paradigmáticas emergentes certamente conduzirão a um reencantamento da ciência que implicará uma redefinição dos laços sociais, no retorno do sujeito, na valorização da ética, no redimensionamento do imaginário e principalmente na abertura da razão” (CARVALHO, 1992).
Nesse sentido, tradição e modernidade, como termos que se combinam e se complementam em arranjos históricos distintos – e não como termos que se excluem – significam, como se viu, romper com a noção temporal dominante que se apresenta em sentido unidimensional.
Reconhecendo o estatuto e o valor de saberes milenares ou seculares, Enrique Leff propõe, em termos epistemológicos, um diálogo entre os saberes para a construção de um novo modelo de conhecimento centrado não apenas nos padrões da ciência formal. Assim, observa: ...isso implica a necessidade de desconstruir a racionalidade que fundou e construiu o mundo, no limite da razão modernizadora que a conduziu a uma crise ambiental, para gerar um novo saber no qual se reinscreve o ser no pensar e se reconfiguram as identidades, mediante um diálogo de saberes (encontro, enfrentamento, entercruzamento, hibridação, complementação e antagonismo) na dimensão aberta pela complexidade ambiental para o reconhecimento e re-apropriação do mundo. (LEFF, 2001, p. 188-189)
Na mesma linha parece situar-se o pensamento de Antônio Carlos Diegues quando propõe o conceito de etnoconservação. Admitindo que a natureza faz parte da história e, portanto, reconhecendo a legitimidade das formas tradicionais de gestão dos recursos entre os caiçaras, assinala: “(...) a valorização do conhecimento e das práticas de manejos dessas populações deveria constituir uma das pilastras de um novo conservacionismo nos países do Sul. Para tanto deve ser criada uma nova aliança entre os cientistas e os construtores e portadores do conhecimento local, partindo de que os dois conhecimentos – o científico e o local – são igualmente importantes”. (DIEGUES, 2000, p. 41-42)
Tais considerações exigem “soluções” criativas e originais que levem a uma recombinação dos termos, em que o novo e o velho possam se enlaçar de ricas e distintas maneiras, em novas sínteses. Em outros termos, o que se postula é a conjunção de “tradição” e “modernidade” (ou modernidade “com-tradição”10) Pensar na possibilidade do intercruzamento de tradição e modernidade, eis o sentido dessa proposta; ou, como sugere Castoriadis, ...não haverá transformação radical, sociedade nova, sociedade autônoma a não ser pela nova consciência histórica, que implica ao mesmo tempo uma restauração do valor da tradição e uma outra atitude face a essa tradição, uma outra articulação entre essa e as tarefas do presente/futuro (CASTORIADIS, 1985, p. 305).
Isso requer pensar em novos paradigmas ou referenciais que permitam recolocar – ou reinventar – a tradição (ou os saberes da tradição) em novos termos, como força viva e propulsora da história. Ou seja, uma nova relação do homem com a natureza – fundada em nova ética – implica um olhar sábio para a frente e para trás. Isso requer não somente um esforço de ruptura com os abismos historicamente produzidos entre ciênciasdo homem e ciências da vida, mas um diálogo fecundo com outras formas e expressões do saber e cosmovisões, tecidas ao longo do tempo, para a produção e recriação da biossociodiversidade.
Superar os limites dessa razão implica considerar que o pensamento do outro em sua originalidade seja portador do que Lévi-Strauss chama de “ciência do concreto”, como expressão do “pensamento selvagem”. Para ele, ...longe de serem , como muitas vezes se pretendeu, obra de uma “função fabuladora” que volta as costas à realidade, os mitos e os ritos oferecem como valor principal a ser preservado até hoje, de forma residual, modos de observação e de reflexão que foram (e sem dúvida permanecem) exatamente adaptados a descobertas de tipo determinado: as que a natureza autorizava, a partir da organização e da exploração especulativa do mundo sensível em termos de sensível. Essa ciência do concreto devia ser, por essência, limitada a outros resultados além dos prometidos às ciências exatas e naturais, mas ela não foi menos científica, e seus resultados não forma menos reais.
Assegurados dez mil anos antes dos outros, são sempre o substrato de nossa civilização. (LÉVI-STRAUSS, 1989, p. 31)
Esse pensamento, que não se confunde necessariamente com o pensamento do selvagem, é provido de abstração e se apresenta como uma dimensão do pensamento universal.
Tal como o pensamento científico, o pensamento mítico é analítico e sintético e, portanto, totaliza-dor (GODELIER, 1982).
Assim, nessa crise do pensamento contemporâneo, a construção de novos paradigmas requer o repensar tanto dos padrões dominantes que regem a relação homem-natureza na modernidade, quanto da cultura e da razão técnicocientífica em que se funda a lógica ocidental. Isso implica um novo projeto societário que venha a incorporar – num movimento contínuo de atualização e renovação – todo um saber secular ou Milena r dotado de conteúdo cósmico e histórico, produzido numa relação íntima e direta com a natureza.
Está se referindo a todo um saber mítico, simbólico e cultural – patrimonial – que índios, seringueiros, pescadores, coletores – povos do mar, da terra e da floresta – vêm produzindo em simbiose com os ciclos produtivos e naturais, em relação de profundo respeito ao meio em que
se inserem. O conhecimento que possuem sobre os ecossistemas dos quais fazem parte e sobre a diversidade de espécies que ali habitam constitui um verdadeiro patrimônio de que a modernidade não pode prescindir para a continuidade da vida no planeta.
Segundo Carvalho (1992), “uma nova cientificidade implica uma ampla reflexão sobre a ciência tradicional”. Para esse autor, o caráter dessa proposta, pensada já numa perspectiva “bioantropossocial” (uma vez que que dialoga com as ciências da vida e com as ciências do homem), não se ancora na justaposição de eficácias científicas, burocráticas e corporativas, mas no diálogo entre saberes de várias ordens, não apenas no âmbito disciplinar, mas com outras formas de conhecimento dotadas de lógicas culturais próprias. Desse modo, trata-se não apenas de reconhecer outras formas de saber geradas pela humanidade, em seu caráter histórico e patrimonial, mas de buscar um intercruzamento ou complementaridade de perspectivas para a construção de novas configurações paradigmáticas. Conforme Edgard de Carvalho, “essas configurações paradigmáticas emergentes certamente conduzirão a um reencantamento da ciência que implicará uma redefinição dos laços sociais, no retorno do sujeito, na valorização da ética, no redimensionamento do imaginário e principalmente na abertura da razão” (CARVALHO, 1992).
Nesse sentido, tradição e modernidade, como termos que se combinam e se complementam em arranjos históricos distintos – e não como termos que se excluem – significam, como se viu, romper com a noção temporal dominante que se apresenta em sentido unidimensional.
Reconhecendo o estatuto e o valor de saberes milenares ou seculares, Enrique Leff propõe, em termos epistemológicos, um diálogo entre os saberes para a construção de um novo modelo de conhecimento centrado não apenas nos padrões da ciência formal. Assim, observa: ...isso implica a necessidade de desconstruir a racionalidade que fundou e construiu o mundo, no limite da razão modernizadora que a conduziu a uma crise ambiental, para gerar um novo saber no qual se reinscreve o ser no pensar e se reconfiguram as identidades, mediante um diálogo de saberes (encontro, enfrentamento, entercruzamento, hibridação, complementação e antagonismo) na dimensão aberta pela complexidade ambiental para o reconhecimento e re-apropriação do mundo. (LEFF, 2001, p. 188-189)
Na mesma linha parece situar-se o pensamento de Antônio Carlos Diegues quando propõe o conceito de etnoconservação. Admitindo que a natureza faz parte da história e, portanto, reconhecendo a legitimidade das formas tradicionais de gestão dos recursos entre os caiçaras, assinala: “(...) a valorização do conhecimento e das práticas de manejos dessas populações deveria constituir uma das pilastras de um novo conservacionismo nos países do Sul. Para tanto deve ser criada uma nova aliança entre os cientistas e os construtores e portadores do conhecimento local, partindo de que os dois conhecimentos – o científico e o local – são igualmente importantes”. (DIEGUES, 2000, p. 41-42)
Tais considerações exigem “soluções” criativas e originais que levem a uma recombinação dos termos, em que o novo e o velho possam se enlaçar de ricas e distintas maneiras, em novas sínteses. Em outros termos, o que se postula é a conjunção de “tradição” e “modernidade” (ou modernidade “com-tradição”10) Pensar na possibilidade do intercruzamento de tradição e modernidade, eis o sentido dessa proposta; ou, como sugere Castoriadis, ...não haverá transformação radical, sociedade nova, sociedade autônoma a não ser pela nova consciência histórica, que implica ao mesmo tempo uma restauração do valor da tradição e uma outra atitude face a essa tradição, uma outra articulação entre essa e as tarefas do presente/futuro (CASTORIADIS, 1985, p. 305).
Isso requer pensar em novos paradigmas ou referenciais que permitam recolocar – ou reinventar – a tradição (ou os saberes da tradição) em novos termos, como força viva e propulsora da história. Ou seja, uma nova relação do homem com a natureza – fundada em nova ética – implica um olhar sábio para a frente e para trás. Isso requer não somente um esforço de ruptura com os abismos historicamente produzidos entre ciênciasdo homem e ciências da vida, mas um diálogo fecundo com outras formas e expressões do saber e cosmovisões, tecidas ao longo do tempo, para a produção e recriação da biossociodiversidade.
Saberes patrimoniais pesqueiros
Lúcia Helena de Oliveira Cunha
Este artigo resulta de um conjunto de trabalhos realizados pela autora, em momentos distintos, como proposta de reflexão final centrada na questão do diálogos entre saberes ( em publicação/ NUPAUB-USP).
Texto retirado da página :
postado por:
Cláudio Rogério
Bolsista do Núcleo NAVIS
DAN
UFRN